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Prefácio por Danislau Também

Djanira na janela - sol maior

Danislau Também

Eu, quando falo de Cleusa Bernardes, falo com o chapéu na mão. Tenho nas mãos o chapéu, e o cabelo revela-se desarrumado.

***

Um maestro do século passado diz que ter visto e ouvido Anton Webern tocar uma única nota ao piano era observar um homem em estado de devoção. Diante do piano, corpo em curvatura devota, está Cleusa Bernardes. O piano é a vida.

Djanira na janela e outros poemas soa como a nota de Webern. Uma nota única, longa, instaurando sonho. O som da nota se esvai, o silêncio como água ocupa seu lugar. Som, silêncio.

A música de Djanira na janela é o recuo da onda em direção ao mar. É menina entrando pra dentro de casa.

***

Djanira na janela e outros poemas soa como um concerto musical. Concerto compondo o arredor. Em sua presença, tudo se torna devoto (o chapéu está na mão). Um ruído desajeitado, um gesto de intolerância, de violência, torna-se mais violento na presença do espírito deste livro. Pronto, estou respirando plenamente. O cabelo, todavia, mantém-se desalinhado, porque houve vento.

***

Anton Webern resiste, sente dificuldade em começar a ensaiar com sua orquestra, por saber que o barulho, a aspereza, a má entoação, a expressão falsa e a articulação errada seria uma tortura. Webern sabe que música é acendimento: o transe do malabarista, o santo que baixa no terreiro, a liga no pão de queijo. Fazer música é cultivar o fogo que acende tudo o que é vivo, para re-produzir a vida. E é cuidar para que essa vida se mantenha intacta. Cuidados infinitos: quantas engrenagens compõem um verso? Impossível cuidar de todas. Só o artista realiza o impossível.

tudo vai bem
tudo está nos trilhos
tudo é como tem que ser


Um poema, um concerto, tudo o que é vivo, está aceso. Uma sílaba a mais, uma palavra mal colocada, pode apagar o brilho de uma obra de arte.

Mas uma nota atravessa os tempos. Inteira, derramando seus deuses, embebida de morte e de vida. Observo ao redor, e tudo é devoção. Djanira na janela é obra acesa. Compactua com o silêncio, com o arranjo das estrelas, com Webern sentado ao piano. A leitura perfaz-se sem acidente, sem sobressalto, como transcorre sem sobressalto a duração de uma nota musical. Uma frase em “a” ali, um baque em “q” aqui: o pianista está em ação.

Pesar em passar as páginas.

Passeio entre elas apenas percebendo o desenho das estrofes. Vejo a menina sentada diante do mar deixando escorrer dos dedos o pouquinho de areia molhada, e o que se erguem são pequeníssimos monumentos. Nada se alarga. As estrofes estão ali, quase não estando. Há expressão no desenho desses pequenos castelos de areia. Sei que essa arquitetura, de alguma forma, se coaduna com as outras arquiteturas do livro. Semânticas, sonoras. Distraída, a menina cuida das mil e uma engrenagens. É a artesã das pequenas coisas, do gesto exato, do pouco dizer. Diz. E ergue grandes monumentos.

que festa as roupas nos varais
nas pequenas cidades
de grandes quintais!


Da página silenciosa, emana a música. A música, sim, alarga-se. Descuido meu, sou todo ouvidos. Perco o contato com os significados. O poema torna-se música pura. O ritmo seduz, embala, subtrai os sentidos, quem lê agora é o corpo. Não é preciso conhecer a língua para ler Djanira na janela e outros poemas. A música traduz todos os poemas para o além-português. Finalmente compreendo a frase que me persegue há anos: “a poesia está sempre em outra língua”.

Recupero os sentidos. E deparo-me com o impossível realizado: tudo é condizente. Diz junto. Impressiona a dupla capacidade dos versos. Soam, e significam. O que era música pura, de repente, começa a dizer. E o que é dito não pode ser dissociado da maneira como é dito – do som do dizer. Em Agosto, por exemplo:

esse mormaço
essa cigarra
essa preguiça
esse mosquito
na minha cara

Chego a ouvir o som da cigarra e do mosquito – emblema do tédio – na sibilância de cada uma das palavras: agosto, esse, mormaço, essa, cigarra, essa, preguiça, esse, mosquito. Apenas no último verso cessa a sibilância. Percebo que é justamente essa brusca interrupção da lógica musical que instaura o princípio de desacordo no poema: anticlímax musical articulado com o anticlímax vivido pelo eu-enunciador. Djanira na janela e outros poemas é livro de poemas plenos. Cleusa Bernardes, professora de poesia, conhece o ofício como poucos.

Que é o existir deste livro? Sucessão de páginas, versos, sons, pausas, ideias? Que é minha leitura deste livro? Passeio da atenção ao longo das páginas? Não apenas isso. É a linha arrebentadiça da memória que costura as imagens, as impressões, a música, os vislumbres suscitados por cada poema, no espírito curioso do leitor. É a linha arrebentadiça da memória que liberta a leitura do tempo linear. Livres, os poemas de Djanira na janela começam a existir junto, simultaneamente, como se fossem um único poema. Fica a última pergunta: que Eu esse grande poema revela? Apesar de um tanto vago, sinto que esse Eu persiste, acompanha, mesmo quando se encerra a leitura.

A leitura de Djanira na janela e outros poemas ultrapassa os momentos em que se está com o livro diante dos olhos.

***

Djanira saiu da janela, o livro está fechado, o sol sumiu no horizonte, o chapéu voltou à cabeça, a tampa desceu ao piano, a menina entrou pra dentro de casa, a onda retornou ao oceano.

Djanira deitada mantém os olhos abertos na noite escura.

DANISLAU TAMBÉM é poeta, autor do livro O herói hesitante, membro da banda Porcas Borboletas e mestre em Teoria Literária pela Universidade Federal de Uberlândia.